Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) desde janeiro deste ano, o juiz uruguaio Ricardo César Pérez Manrique tem uma prioridade para seu mandato: ele quer que o colegiado tenha mais diálogo com os países, com os tribunais nacionais e principalmente com os cidadãos mais vulneráveis do continente. Quer uma Corte mais aberta e próxima das pessoas.
Em entrevista ao JOTA, ele afirmou, por diversas vezes, que pretende ser mais ouvinte do que voz imponente frente à Corte. Segundo ele, é preciso garantir a independência e a eficiência aos sistemas judiciais e governos para que as decisões locais possam ser cumpridas.
O magistrado ressaltou que, para isso, é preciso dar melhores condições de trabalho aos magistrados nacionais, que, segundo ele, são as figuras mais importantes na solução de conflitos humanos, já que acompanham os problemas em tempo real e in loco.
Manrique disse que o Brasil “tem uma situação complexa de direitos humanos, por ser um país continental com distintas demandas”. “De norte a sul, há muitas diferenças entre, por exemplo, um nordestino, um paranaense ou alguém do Rio Grande do Sul. Isso se observa na aplicação dos direitos humanos”, avalia.
Na conversa, Manrique falou sobre os desafios de sua presidência, a relação dele com o juiz brasileiro da Corte, o advogado Rodrigo Mudrovitsch, sobre o avanço do autoritarismo no continente e as consequências decorrentes da pandemia na aplicação do direito internacional.
O presidente citou a invasão russa na Ucrânia e a desigualdade na distribuição de vacinas contra a Covid-19 para manifestar preocupação com deficiências na cooperação entre Estados para a manutenção da paz e da equidade entre os povos. Mas se mostrou esperançoso em relação ao continente: quando encerrar sua presidência, ao fim de 2023, ele espera ser visto como um juiz que colaborou, como pôde, na aproximação entre os habitantes da América.
Como o senhor avalia os primeiros meses à frente da Corte? Os primeiros passos têm sido como imaginou quando assumiu a presidência?
Assumimos a presidência da Corte em janeiro deste ano. Formalmente, em 7 de fevereiro, quando fizemos um discurso em Assunção, com a presença dos juízes e juízas. Desde então, temos orientado que a função da presidência é essencialmente representar a Corte, mas também realizar um trabalho interno, conjuntamente com a secretaria.
Definimos uma série de objetivos, entre os quais um dos grandes é ser uma Corte aberta, uma Corte que dialoga. Que dialoga com as pessoas, com os Estados, onde a voz das vítimas é muito importante.
Quando as pessoas procuram a Corte, querem buscar a justiça que não encontraram em seus países. Por isso, nos agradecem quando as escutamos. Um ponto importante nessa política da comunicação aberta é o diálogo com os sistemas judiciais, tanto com as cúpulas como com todos os operadores.
Nesse sentido, temos o propósito de estar em outubro em Brasília, em uma visita nessa perspectiva de diálogo com as Cortes, com juízes e juízas e com defensores. Para nós, é algo essencial porque é a forma com que a Corte se comunica com os entes que têm a responsabilidade de execução das decisões da própria Corte.
No seu discurso de abertura, quando assumiu a presidência, o senhor disse que uma de suas prioridades era a luta contra o autoritarismo crescente na América. Como vê o cenário atual dos governos e que ações práticas a Corte pode tomar para melhorar a situação?
A Corte tem manifestado sua preocupação, por meio de declarações, com a manutenção das democracias da região, que estão ameaçadas, de alguma forma, com o surgimento de tendências autoritárias na sociedade.
O controle do autoritarismo tem a ver com a independência judicial. A necessidade de assegurar tribunais que são independentes, que são eficazes, que atuem com probidade, com integridade, do ponto de vista ético e do ponto de vista da honestidade dos seus componentes. Porque, em um Estado Democrático de Direito, o sistema judicial tem que cumprir a função de que todas pessoas, as instituições e o próprio Estado atuem conforme as regras de direito.
Nesse sentido, reconhecemos que a Corte tem exaltado expressamente, por meio das sentenças, o papel fundamental que cumprem juízes e juízas nacionais em ações efetivas de garantias dos direitos humanos. Por quê? Porque o juiz nacional é quem lida com o problema pela primeira vez e é quem busca a solução, em tempo real, dos problemas relacionados aos direitos humanos.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como todo sistema internacional, atua sob o princípio de subsidiariedade, ou seja, quando o sistema interno de proteção fracassou. Por isso, volto a dizer: a Corte destaca o valor fundamental que os juízes locais têm na manutenção do Estado de Direito, o valor fundamental da independência judicial e outro fator muito importante, que tem a ver com ambas as coisas, que é que as sentenças que os juízes emitem têm que poder ser cumpridas, ser executadas.
Isso é fundamental, porque cremos que os autoritarismos buscam fragilizar os sistemas judiciais para, de alguma forma, os colonizar, de maneira que não consigam aplicar as normas.
Como tem sido o diálogo da Corte com o Brasil? Como o senhor avalia o desenvolvimento do país em matéria de direitos humanos e a colaboração na construção da jurisprudência do tribunal?
O Brasil é o maior país do continente e, hoje, com a reestruturação da Corte, temos um juiz brasileiro, o que sempre pensei ser importante, pelo significado do país e pela barreira de idioma indiscutível. É fundamental que o Brasil, como Estado, manifeste seu interesse voluntário em participar com um juiz na Corte.
Todos sabemos que o Brasil tem uma situação complexa de direitos humanos, por ser um país continental com distintas demandas. De norte a sul, há muitas diferenças entre, por exemplo, um nordestino, um paranaense ou alguém do Rio Grande do Sul. Isso se observa na aplicação dos direitos humanos.
Acredito que estamos em um processo absolutamente positivo no sentido que estamos trabalhando em duas linhas de ações. Por um lado, em fazer com que a Corte fale português. Isso significa que toda resolução ou sentença pode ser acessada em português. A partir disso, que possa haver um diálogo em português entre o Brasil e a Corte – e não me refiro só ao governo ou aos juízes. Estamos trabalhando nessa linha e, quando formos ao Brasil, em agosto, vamos anunciar medidas concretas nesse sentido.
Por outra parte, queremos trabalhar com o Brasil, com a sociedade civil, com o governo e com o sistema judicial. Já temos um acordo para que o Conselho Nacional de Justiça nos ajude como fonte de informação e na supervisão do cumprimento das sentenças contra o Brasil. Isso é muito positivo – gerar um processo de capacitação e diálogo. Queremos difundir a jurisprudência da Corte Interamericana, mas também receber a jurisprudência das cortes brasileiras, além das inquietudes e questionamentos por parte do sistema judicial brasileiro.
Como é sua relação com Rodrigo Mudrovitsch, o juiz brasileiro que hoje faz parte da Corte? Qual tem sido a contribuição dele ao colegiado?
Minha relação com ele é excelente. Eu não o conhecia, mas, nestes poucos meses em que estamos trabalhando juntos, temos construído uma relação muito boa. O Rodrigo Mudrovistch é um homem muito estudioso, muito cuidadoso e respeitoso com a forma de trabalho da Corte. Nós temos um diálogo com muita profundidade, aberto, como tenho com todos os outros juízes.
Acredito que ele é uma pessoa muito inteligente, muito comprometida e que, como juiz brasileiro, tem a tarefa de vinculação entre a Corte e o Brasil. Isso será muito importante e nos trará resultado em pouco tempo.
Temos no Brasil um presidente da República que foi denunciado algumas vezes por possíveis violações de direitos humanos, como ataques contra indígenas e também por condutas em relação à pandemia de Covid-19. Como o senhor avalia a atuação de Jair Bolsonaro do ponto de vista dos direitos humanos?
Respondendo de forma direta a essa pergunta: essa é uma situação interna do Brasil. O que vejo é que há uma questão, lamentavelmente bastante comum na região, que é a polarização, o surgimento de posições que aparecem como extremas, onde não há um diálogo democrático entre os diferentes.
Para mim, o Estado Democrático de Direito e a democracia, como regime político de um país, têm duas finalidades: por um lado, é o regime pelo qual se determina de que maneira se escolhe as pessoas que vão exercer o poder, a representação da comunidade, conforme o pacto social que está na Constituição. Mas a democracia é, essencialmente, uma forma pacífica de resolver as controvérsias, uma forma para reunir as diferentes extensões que existem em um regime democrático.
Como disse Churchill: ‘Já foi dito que a democracia é a pior forma de governo, exceto por todas as outras formas que foram tentadas’. Mesmo as piores democracias ou as más presidências, digamos assim, têm que assegurar a possibilidade de resolução pacífica das controvérsias que surgem na sociedade. Por isso, voltemos ao princípio: é fundamental o papel que cumpre o sistema judicial na aplicação pacífica do Direito.
Ao tomar posse, o senhor também disse que a pandemia seria um dos maiores desafios do seu mandato. Como tem sido? Como isso afetou o trabalho da Corte?
A Corte teve que se adaptar à realidade. Eu lembro que, em 13 de março de 2020, começaram a surgir informações de que vários países fechariam as suas fronteiras devido à Covid-19. Voltamos aos nossos países e as fronteiras se fecharam, definitivamente, naquele momento. Em 9 de abril, já estávamos fazendo uma sessão remota. Aprovamos uma declaração com uma série de recomendações aos Estados para combater a pandemia.
Dali em diante, estivemos, até 7 de janeiro de 2022, trabalhando exclusivamente de maneira virtual. Agora, entendemos que esse regime de trabalho virtual vai se manter. Temos que buscar formas híbridas que nos permitam ter parte do trabalho presencial, sobretudo nas audiências, mas com outras possibilidades.
Essa é uma consequência absolutamente virtuosa da pandemia para a Corte. Isso demonstrou que podemos trabalhar por mais tempo, em mais dias, e que isso pode ser feito graças ao virtual, porque cada um pode trabalhar da sua casa, do lugar onde estiver.
Ainda que a situação da pandemia esteja melhorando, pouco a pouco, a melhora tem sido desigual entre os países do continente, principalmente na distribuição das vacinas. O que se pode fazer para reduzir essa desigualdade? Como a Corte pode contribuir?
Te agradeço por ter me perguntado isso, porque este é um tema de minha preocupação. Principalmente a forma desigual de distribuição de vacinas, os prazos de distribuição e a forma insuficiente como as vacinas chegaram a muitos países.
Quero destacar que, no decorrer da pandemia, a Corte analisou o caso Vélez Loor Vs. Panamá, no qual o Tribunal ordenou que os imigrantes que entravam ilegalmente pela fronteira do Panamá, porque não haviam fronteiras abertas, deviam ser atendidos adequadamente em relação à vacinação e contaminação pela Covid-19.
Em uma das medidas provisórias, a Corte fez uma extensa consideração sobre o tema da vacinação, sobre a necessidade da distribuição equitativa, de uma aquisição transparente e, sobretudo, de uma distribuição igualitária. Acredito que o continente avançou muito. A região se vacinou bem se compararmos com as taxas da Ásia e da África, inclusive com os grandes países.
E aí entra um tema que eu sempre menciono, que são as falhas no que se denomina ‘governança global’, porque o mecanismo que se pensou para vacinar a todas as pessoas, chamado Covax, fracassou. Os países pobres nunca tiveram acesso a essas vacinas. As vacinas que chegaram, não foram por trabalho da OMS [Organização Mundial da Saúde], mas por ações dos próprios países.
Um exemplo, que também envolve vacina, indiretamente, mas sobretudo envolve a deficiência que temos na governança global, é a guerra da Ucrânia. Lá, vemos que o sistema global de manutenção da paz não está funcionando de maneira eficiente.
O senhor tem feito constantes visitas aos locais relacionados aos casos da Corte. O quanto a relação direta com as pessoas e os lugares ajuda para que o tribunal tome melhores decisões e até para que o senhor, pessoalmente, se aprimore como juiz?
Essa proximidade, a presença da Corte Interamericana em seminários ou em visitas aos países, é o que temos pensado como prioridade. Queremos aproximar a Corte das pessoas, dos juízes, das juízas, da sociedade civil e do próprio Estado.
Quando vamos a um país, temos conversas com os Três Poderes do Estado, escutamos a sociedade civil e damos a oportunidade, também às vítimas, de serem recebidas pela Corte. Isso constrói uma relação da Corte com as instituições e com as pessoas, que é o que importa nos países. Esse contato direto permite aumentar ainda mais o conhecimento da Corte e melhorar o grau de compromisso que as autoridades têm com as nossas decisões. É muito positivo.
O seu mandato termina ao fim de 2023. O que quer deixar como legado? Como quer ser lembrado ao fim da sua presidência?
Se eu pudesse escrever a história de como isto termina, eu gostaria de ser lembrado como um presidente que gerou condições para que a Corte possa se abrir, possa compartilhar. Quero que a Corte siga sendo um Tribunal de aproximações, que olha para as pessoas.
Por isso temos uma política de comunicação muito produtiva, que passa não só por emitir comunicados oficiais, mas que continuamente informa sobre o funcionamento da Corte e também recebe informações sobre o que se passa nos países.
Um dos objetivos que quero cumprir é de configurar um grupo humano e diversificado de trabalho, com os juízes novos. Depois de 40 anos de prevalência de juízes homens, temos uma aproximação de uma equidade de gênero. Para nós, isso é muito importante – consolidar o aspecto humano, consolidar a forma de trabalho e gerar todas as aberturas possíveis para que a jurisprudência da Corte siga avançando de maneira progressiva na aplicação dos direitos humanos na região.
Seguiremos trabalhando com os juízes e juízas nacionais para permitir que, por meio do controle de convencionalidade, haja um diálogo direto e permanente entre os cidadãos e cidadãs e a Corte Interamericana.
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